terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Octávio Luiz Motta Ferraz e Fabiola Sulpino Vieira-Direito à saúde, recursos escassos e equidade: os riscos da interpretação judicial dominante

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"INTRODUÇÃO

Quando se discutem políticas de saúde no Brasil de hoje, não se podem ignorar os arts. 6º e 196 da Constituição Federal de 1988, que reconhecem a saúde como direito fundamental das pessoas e dever do Estado. Um assunto que até 1988 era primordialmente técnico e político passou a ser também jurídico e de ordem constitucional.

As implicações dessa "juridicização constitucional" das políticas de saúde estão longe de ser triviais. De um lado, tal "juridicização" impõe aos técnicos em saúde pública princípios e limites legais que antes não estavam presentes ou, quando estavam, não se revestiam da força de normas constitucionais. De outro, traz ao seio do mundo jurídico uma das mais complexas áreas de políticas públicas do Estado moderno. Não seria realista esperar que esse embate entre duas áreas técnicas distintas, que operam com conceitos e modelos de racionalidade significativamente diversos, se desse sem maiores choques e conflitos.

A partir do fim da década de 1990, os problemas latentes dessa união inusitada vêm aflorando em milhares de ações judiciais espalhadas pelo país, centenas delas culminando na mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal. Percebe-se, nessas ações, um claro descompasso entre o que o Poder Judiciário e o que os técnicos em saúde do Estado vêm entendendo por direito à saúde. De um lado, os especialistas em saúde pública partem da premissa de que os recursos da saúde são necessariamente limitados em relação à demanda. É necessário, por consequência lógica, fazer escolhas sobre a utilização desses recursos. O direito à saúde, nesse contexto, é também necessariamente limitado, e não absoluto. Além disso, é consenso entre os profissionais da área que a saúde das pessoas é determinada por uma série de fatores sociais, econômicos, ambientais e biológicos inter-relacionados, e não exclusivamente pelos cuidados médicos a que têm acesso. A atenção à saúde depende, portanto, de políticas multissetoriais abrangentes que vão muito além dos serviços médicos e do fornecimento de medicamentos. De outro lado, o Judiciário parte da premissa de que a saúde(e aprópria vida) foi (foram) erigida(s) ao status de direitos fundamentais pela Constituição de 1988. Diante da irrefutável importância desses valores e da força normativa que a Constituição lhes empresta, o problema da escassez de recursos é colocado em plano secundário. Trata-se, na visão da maioria dos tribunais, de interesse financeiro do Estado menor, que não pode se sobrepor aos bens maiores da saúde e da vida. Além disso, na maioria das ações que chegam ao Judiciário, o que se pleiteiam são intervenções médicas pontuais e específicas, como a realização de determinada operação ou o fornecimento de certo medicamento. Assim, a saúde é necessariamente isolada de seu contexto socioeconômico ambiental mais amplo e vista do prisma estreito dos cuidados médicos.

É compreensível a preocupação do Judiciário sobre o risco de os chamados direitos econômicos e sociais garantidos pela Constituição serem negligenciados sob o pretexto de que são normas programáticas, isto é, sem eficácia plena. Porém, isso não justifica descartar o problema da escassez de recursos como se ele fosse ilusório ou secundário.

Neste artigo, sugerimos uma interpretação do direito à saúde com potencial de resolver o atual impasse entre a visão dominante no Judiciário e a visão dos especialistas em saúde pública."

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