"INTRODUÇÃO
Quando se discutem políticas de saúde no Brasil de hoje, não
se podem ignorar os arts. 6º e 196 da Constituição Federal de 1988, que
reconhecem a saúde como direito fundamental das pessoas e dever do Estado. Um
assunto que até 1988 era primordialmente técnico e político passou a ser também
jurídico e de ordem constitucional.
As implicações dessa "juridicização
constitucional" das políticas de saúde estão longe de ser triviais. De um
lado, tal "juridicização" impõe aos técnicos em saúde pública
princípios e limites legais que antes não estavam presentes ou, quando estavam,
não se revestiam da força de normas constitucionais. De outro, traz ao seio do
mundo jurídico uma das mais complexas áreas de políticas públicas do Estado
moderno. Não seria realista esperar que esse embate entre duas áreas técnicas
distintas, que operam com conceitos e modelos de racionalidade
significativamente diversos, se desse sem maiores choques e conflitos.
A partir do fim da década de 1990, os problemas latentes
dessa união inusitada vêm aflorando em milhares de ações judiciais espalhadas
pelo país, centenas delas culminando na mais alta corte, o Supremo Tribunal
Federal. Percebe-se, nessas ações, um claro descompasso entre o que o Poder
Judiciário e o que os técnicos em saúde do Estado vêm entendendo por direito à
saúde. De um lado, os especialistas em saúde pública partem da premissa de que
os recursos da saúde são necessariamente limitados em relação à demanda. É
necessário, por consequência lógica, fazer escolhas sobre a utilização desses
recursos. O direito à saúde, nesse contexto, é também necessariamente limitado,
e não absoluto. Além disso, é consenso entre os profissionais da área que a
saúde das pessoas é determinada por uma série de fatores sociais, econômicos,
ambientais e biológicos inter-relacionados, e não exclusivamente pelos cuidados
médicos a que têm acesso. A atenção à saúde depende, portanto, de políticas
multissetoriais abrangentes que vão muito além dos serviços médicos e do
fornecimento de medicamentos. De outro lado, o Judiciário parte da premissa de
que a saúde(e aprópria vida) foi (foram) erigida(s) ao status de direitos
fundamentais pela Constituição de 1988. Diante da irrefutável importância
desses valores e da força normativa que a Constituição lhes empresta, o
problema da escassez de recursos é colocado em plano secundário. Trata-se, na
visão da maioria dos tribunais, de interesse financeiro do Estado menor, que
não pode se sobrepor aos bens maiores da saúde e da vida. Além disso, na
maioria das ações que chegam ao Judiciário, o que se pleiteiam são intervenções
médicas pontuais e específicas, como a realização de determinada operação ou o
fornecimento de certo medicamento. Assim, a saúde é necessariamente isolada de
seu contexto socioeconômico ambiental mais amplo e vista do prisma estreito dos
cuidados médicos.
É compreensível a preocupação do Judiciário sobre o risco de
os chamados direitos econômicos e sociais garantidos pela Constituição serem
negligenciados sob o pretexto de que são normas programáticas, isto é, sem
eficácia plena. Porém, isso não justifica descartar o problema da escassez de
recursos como se ele fosse ilusório ou secundário.
Neste artigo, sugerimos uma interpretação do direito à saúde
com potencial de resolver o atual impasse entre a visão dominante no Judiciário
e a visão dos especialistas em saúde pública."
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